segunda-feira, 9 de março de 2009

VIOLÊNCIAS MÚLTIPLAS


O marido chega em casa depois do trabalho, vê a esposa se arrumando e pergunta:
- Oi, amor, aonde você vai?
E a resposta vem, evasiva:
- Ah, não sei... Estou meio entediada, hoje, foi tudo tão normal. Academia, shopping, cabeleireiro... Acho que vou ali na clínica da esquina fazer um aborto.

Nunca sequer pensei em ouvir diálogo semelhante. Afinal, não há mulher no mundo que veja o processo de interrupção da gravidez como algo prazeroso, tal como tomar um sorvete ou ir ao cinema. Penso que todas – inclusive as que consideram ser este mais um direito da mulher – são conscientes do significado deste ato. Contudo, a intolerância parece ainda ser a diretriz quando o assunto é discutido [1].
O Código Penal brasileiro (baixe a versão completa em PDF
aqui), que data de 1940, prevê a tipificação do aborto como crime (Arts. 123 a 127) e, no Art. 128, apresenta as seguintes exceções:

Art. 128. Não se pune o aborto praticado por médico:
Aborto necessário
I - se não há outro meio de salvar a vida da gestante;
Aborto no caso de gravidez resultante de estupro
II - se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal.
Além disso, uma liminar de 2004 do STF autoriza a interrupção da gravidez também em casos de anencefalia fetal.

Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), são praticados cerca de 46 milhões de abortos induzidos por ano em todo o mundo, para um total de 210 milhões de gestações. Daquele total, aproximadamente 20 milhões são praticados sob condições de risco, notadamente em países pobres. Em outros termos, segundo a OMS ocorre uma interrupção irregular (de risco) a cada 7 nascidos vivos em todo o planeta. Como principal conseqüência, a morte materna.
Ora, se a prática do aborto não é considerada suicídio, o que leva a mulher a buscar tal saída, dados os riscos envolvidos? Afinal, dos casos totais de morte materna, 13% ocorrem como resultado do aborto de risco. Segundo a mesma OMS, são 67.000 mortes ao ano, o equivalente ao contingente populacional de Itamaraju (BA), Ouro Preto (MG) ou Lajeado (RS). Aborto é, portanto, basicamente uma questão de saúde pública, pois os procedimentos associados à interrupção da gravidez devem ser realizados por profissionais de saúde treinados, com equipamentos adequados e condições ótimas de higiene. E, para desmistificar a idéia de que a mulher se submete a aborto por “simples capricho”, veja a tabela abaixo:



Aqui no Brasil a realidade apresenta uma face ainda mais triste. Uma matéria veiculada no jornal O Globo de hoje informa que, no hospital Pérola Byington, na capital paulistana, 43% dos atendimentos diários são concedidos a meninas menores de 12 anos vítimas de estupro, grávidas. O hospital é considerado referência no atendimento a mulheres vítimas de violência sexual. Segundo o Ministério da Saúde, o aborto é a 4ª principal causa de morte materna no país.
Entretanto pouco é ainda efetivamente feito em nosso país, devido às pressões das parcelas mais conservadoras e machistas de nossa sociedade. Não há muito tempo um político disse: “Está com vontade? Estupra, mas não mata”. É dessa forma que a violência contra a mulher é vista: como algo banal, que tem sua razão de existir pela necessidade de saciar a vontade de outrem. Ou, pior ainda: porque a mulher, com seu modo de andar e se vestir, “provocou o pobre coitado”. Em casos de estupro a mulher é vista antes como culpada, não como vítima. Pergunte a qualquer mulher que tenha entrado em uma delegacia para registrar esse tipo de ocorrência.
Depois da violência propriamente dita, a mulher ainda tem que optar por outra, de duas: submeter-se à violência do aborto, por vezes de forma clandestina, mesmo com o amparo da lei (principalmente pela vergonha de se assumir como vítima de estupro) ou submeter-se à violência de uma gestação indesejada, em que o fruto será sempre lembrado como resultado de um ato bárbaro, mesmo que cercado de todo o amor do mundo pela mãe.
No caso amplamente divulgado na última semana, sobre a menina pernambucana de 9 anos há ainda outros agravantes. Submetida a uma rotina de violências por seu padrasto desde os 6 de idade – sua irmã de 14 anos também sofreu o mesmo calvário – e vítima do silêncio igualmente criminoso de sua mãe, foi exposta ao distinto público quando levada a Recife para um aborto de gêmeos. O caso teve ainda maior repercussão quando o arcebispo da Igreja Católica para Olinda e Recife, D. José Cardoso Sobrinho, comunicou que as pessoas envolvidas naquele ato (mãe e equipe de funcionários do hospital, principalmente médicos) estavam excomungados, segundo o Direito Canônico [2]. Tal fato não teria maior importância para aqueles que não professam a fé católica, não fossem três pequenos detalhes: primeiro, a tentativa de intervenção em uma unidade pública de saúde. O arcebispo tentou interromper o processo cirúrgico (a advogada da arquidiocese tentou interpor um recurso). Em uma sociedade em que Estado é laico, isto é inadmissível. Segundo, a declaração do arcebispo de que o estupro seria um “mal menor” diante do aborto. Para completar, o religioso calou-se obsequiosamente em relação ao padrasto. Espero que tal silêncio não tenha relação com os escândalos de pedofilia envolvendo padres ao redor do mundo.
Entendo perfeitamente que a concepção seja um dogma para a igreja. Mas não aceito que, por tal motivo, três pessoas sejam condenadas à morte. Sim, três. Os gêmeos e a mãe, a menina de 9 anos que, dadas as condições precárias de saúde, higiene e alimentação, afora a precocidade de uma gravidez num corpo que não está pronto para isso, com certeza viria a falecer. Além disso, a mãe da menina e a equipe do hospital foram condenados à excomunhão, enquanto que ao estuprador foi oferecido o perdão.

[1]
Não somente as mulheres sofrem por isso. Quase fui reprovado em uma disciplina no doutorado por tentar discutir o assunto em sala. E isso porque estudo em universidade pública, e a Igreja não tem poder de intervenção sobre o Estado...
[2] Para a Igreja Católica, de acordo com o Direito Canônico, a excomunhão é automática. O clérigo, portanto, apenas comunicou o fato às pessoas envolvidas.

Dedico este post à minha filha, Maria Clara. Que ela possa viver num mundo mais digno e justo, menos conservador e preconceituoso.

4 comentários:

Bel disse...

Você tocou num ponto crucial pra mim: o silêncio CRIMINOSO da mãe.
Fiz uma reportagem em 2006 no Projeto Sentinela, que dá suporte a crianças vítimas de violência sexual, e fiquei pasma:

90% dos agressores são familiares (pai, padrasto, tio, irmão e até avô). Isso eu já havia ouvido. Mas o que me chocou foi que a mãe quase nunca é quem denuncia. As denúncias vêm por parte de avós, professoras e vizinhas, sempre mulheres. As mães que denunciam são menos de 5%.

É dolorido saber, ouvir, imaginar isso. E quanto a quem vive esta situação? Não quero nem pensar. Quem sabe, se eu não pensar isso deixa de ser verdade??? (Esse é o pensamento da maioria, não é?)

Bjooo

Marcelo Acha disse...

Disse ela, em depoimento preliminar, que não sabia de nada. Acho um pouco difícil, já que a menina sofria abuso sexual desde os 6 anos de idade, e a irmã mais velha, que é ESPECIAL (!!!) passou pelos mesmos problemas.
Geralmente a mãe não denuncia, com medo de sofrer espancamentos ou, pior ainda, de que o companheiro a abandone. Absurdo, mas é a realidade.

Kenia Mello disse...

Atualmente, estou fazendo uma pós-graduação numa faculdade católica, e até agora, percebi nos professores uma postura muito honesta com relação ao caso da menina de nove anos e a aberração que comenteu o arcebispo dom José Sobrinho. Claro que pinta um certo ar de sussurro quando nos lembramos onde estamos, mas aí já foi. :)

Marcelo Acha disse...

Fui professor em faculdade católica, e nunca me senti ameaçado em relação às minhas idéias e pensamentos. Minha posição política/ética nunca foi questionada. Mas, infelizmente, os Torquemadas ainda existem...