quinta-feira, 6 de novembro de 2008

YES, WE... QUEM???

É inegável que a eleição de Barack Obama à presidência dos Estados Unidos seja emblemática. Afrodescendente, filho de imigrante muçulmano, Obama seria o candidato mais que improvável em qualquer outra ocasião. Mas a péssima administração de George W. Bush permitiu não somente sua fácil vitória, mas também a conquista da hegemonia republicana no Congresso.
Em seu “discurso da vitória”, Barack Obama ressaltou a importância da “reconstrução” da América, e disse que conta com a disposição patriótica dos republicanos para tanto. O tom conciliador, mais que uma necessidade, demonstra aquilo que o agora presidente quis mostrar ao eleitor durante toda a sua campanha. Obama nunca se posicionou como um candidato das minorias. Sabia que seria massacrado, ainda nas eleições primárias do Partido Democrata, se o fizesse. Foi assim que conseguiu superar todos os obstáculos que se lhe impuseram pela frente, num país ainda claramente (mas não totalmente) racista. O que não foi dito de forma direta ao democrata foi subliminarmente apresentado a vários dos seus simpatizantes, que tiveram seus registros negados em diversas juntas eleitorais por todo o país, notadamente nos estados do Meio Oeste.
Restava a Obama mostrar-se como o candidato que, embora negro, seria o mais preparado para manter o status quo da maioria branca [1]. E assim foi feito, de forma bastante eficiente e meticulosa. Não à toa abriu mão das verbas públicas em nome das pequenas contribuições privadas, a partir de cinco dólares. Com isso, trouxe o americano médio para o centro de sua campanha, fazendo cada um sentir-se verdadeiramente parte do processo. Ao final, arrecadou mais do que o dobro dos recursos disponíveis para o seu adversário, o também senador John McCain [2]. Como resultado, obteve expressiva vitória neste pleito: 52% dos votos, contra 46% de seu principal oponente. Venceu em 27 estados, conquistando 349 delegados. Em contrapartida, McCain venceu em 21 estados, totalizando 163 delegados. Dois estados ainda não terminaram a apuração dos votos.
De certa forma, Obama teve uma grande ajuda dos republicanos. Não bastasse a mediocridade que cercou as duas gestões Bush, a atual crise econômica teve peso importante na reta final desta disputa. Além disso, McCain demonstrou-se inseguro – talvez principalmente por medo de ver sua imagem associada à do atual presidente – e deu a sensação de estar perdido quando a crise eclodiu, o que é fatal para um candidato. Parecia ter assumido a condição de lame duck [3] designada a Bush, e foi de certa forma atropelado. Não só pelos votos, mas principalmente pela mídia. Aliás, foi exatamente por causa dessa hesitação – em contraste com a determinação de Obama – que levou o general Colin Powell a declarar em público que, apesar de republicano, apoiava a candidatura adversária. Como vimos, não estava sozinho. Os democratas provavelmente nunca tiveram uma vitória tão fácil.
Essa eleição é, verdadeiramente, um marco. Obama não é somente o “queridinho” da mídia. Mais do que isso, é símbolo de alterações na sociedade estadunidense. Há apenas 40 anos os EUA viam a poderosa Ku Klux Klan incendiar casas e assassinar cidadãos negros em vários pontos do país. Em 1968, o pastor e ativista dos direitos humanos, Martin Luther King Jr., era assassinado. Naquela época, negros não podiam votar, não eram considerados cidadãos. Em tão pouco tempo ter um presidente afrodescendente é, realmente, uma revolução na sociedade norteamericana. Como bem disse Thomas Friedman, articulista do The New York Times, na edição desta quarta-feira: Finalmente acabou a Guerra Civil na América.
Entretanto, o que mais haverá mudado? O mundo inteiro, ávido por essa resposta, ficou atento ao desenrolar da disputa ao cargo de dirigente máximo do país mais importante do planeta [4]. A candidatura democrata converteu-se em um símbolo de esperança para todos, das crianças aos idosos. Mas... esperança para quem?
Provavelmente, esperança em uma sociedade menos egocêntrica, em um país mais justo. De que ocorram profundas mudanças naqueles que se autoproclamam guardiães da democracia, mas toleram excrescências como Guantánamo. Um país que, em curto prazo de tempo, e tão somente em função de seus interesses econômicos, transforma o aliado Saddam Hussein em terrorista internacional. Que envia tropas em busca da cabeça de Osama Bin Laden, mas continua a negociar com sua família no Oriente Médio e em território americano. Que atentou diversas vezes contra a vida de Fidel Castro, mas estende tapetes vermelhos para a família Al Saud. Devo ressaltar aqui que não pretendo defender Fidel, Osama ou Saddam, mas apenas demonstrar, com esses exemplos, o quão incoerente é o discurso dos EUA. Ou talvez coerente até por demais. Afinal, o que importa é o interesse econômico, típico do pragmatismo norteamericano. Daí o total desprezo pelas liberdades individuais e os direitos civis, quando estes não convêm ao sistema.
Idealismos e ideologias à parte, pouca fé deposito nesse sentido de mudança que atravessa o mundo por esses dias, com a eleição do novo presidente dos Estados Unidos. Por dois motivos básicos: primeiro porque, desde o início, Obama mostrou-se disposto a não enfrentar o establishment. Como dito anteriormente, sabia que suas chances seriam nulas caso se apresentasse como o candidato das minorias, das mudanças radicais. Não é isso o que o eleitor WASP espera dele, ou de qualquer outro ocupante da Casa Branca. Ou seja, Obama é visto apenas como o mais capaz, neste momento, de reconduzir o país ao padrão de produção e consumo de bens e serviços aos quais a população está acostumada. Em segundo lugar, também por conta da tradição política do Partido Democrata, sua administração terá um perfil protecionista, em relação ao comércio internacional. Afinal, boa parte destas decisões é tomada pelo Congresso, e não pelo presidente [5]. Os democratas conquistaram 56 cadeiras no Senado, contra 40 dos republicanos (ainda há quatro cadeiras em disputa). Na Câmara, são 254 deputados democratas, contra 173 republicanos. Embora o diálogo seja uma tradição dos governos democratas nas relações internacionais, e isso tenha sido objeto de seu discurso na noite de terça-feira passada, não espero por mudanças drásticas, com ampla redefinição da política externa estadunidense. Então, que vantagem o mundo teria com uma vitória democrata? Em termos específicos, o que pode significar para o Brasil?
Vi muita gente torcendo por Barack Obama, como se as eleições fossem aqui. Embora nossa posição no cenário internacional tenha mudado bastante nos últimos anos – assumimos a condição de potência emergente, junto a China, Índia e Rússia (BRIC) – na verdade despertamos pouco interesse dos americanos. Somos ainda considerados um “quintal”, no melhor estilo da Doutrina Monroe, e pouco mudará nos anos vindouros. E se a crise econômica vigente alimenta o protecionismo dos democratas, em função dos índices de recessão, desemprego e produtividade, menos espaço e oportunidades de negócio teremos para os nossos produtos. Os subsídios aos agricultores continuarão, assim como as cláusulas de proteção ao ineficiente parque siderúrgico norteamericano, só para citar dois exemplos. Mas não sou pessimista. A vitória de Obama é significativa, sim, e não somente por derrubar as barreiras da segregação racial e conduzir um negro ao cargo de presidente dos EUA pela primeira vez na história. Afinal, só por decretar o fim da era Bush, já seria importante. Mas também é válida por trazer nova esperança. Que esta possa ser real, e não uma ilusão de Polyana. Devemos nutrir essa expectativa em uma mudança maior, para que o resto do mundo também possa dizer: sim, nós podemos.


[1] Os eleitores brancos são maioria nos EUA. Dos aproximadamente 300 milhões de habitantes, estima-se que 69% do total sejam compostos por indivíduos brancos, 12,5% por hispânicos e 12,3% por afrodescendentes. Entretanto, a relação muda consideravelmente quando analisados os que têm registro eleitoral (direito a voto), pois os brancos sobem para a faixa dos 80%. A se considerar essa disparidade, a eleição de Obama é mesmo um fenômeno.
[2] Ironicamente, o senador John McCain tentava acusar seu adversário de ter “idéias socialistas”, pois seria favorável a uma intervenção do Estado na economia, nos moldes do New Deal. Para os republicanos, o Estado não deveria injetar recursos no sistema para ajudar a quem quer que fosse. Ao mesmo tempo, não abriu mão das verbas estatais para sua campanha. Ao contrário, Obama não utilizou recursos públicos.
[3] Lame duck ou pato manco é o termo usado para designar o político que, por estar em fim de mandato, não tem mais poder para conduzir discussões e mudanças importantes. Está “esvaziado” por sua condição política.
[4] Dada sua condição militar e econômica (maior PIB do mundo, estimado em US$ 13,8 trilhões, ou 25,49% do total mundial, segundo dados do FMI para 2007), não há como não considerar os EUA como a maior potência do planeta.
[5] O exemplo típico desta influência do Congresso dos EUA sobre a política externa é a Lei Helms-Burton, que impõe sanções a empresas e países que negociarem com Cuba. Segundo a lei, empresas estrangeiras com ativos nos EUA e que negociarem com Cuba poderão até mesmo terem seus bens confiscados em solo norteamericano.

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